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A SBS em Português conversou com a cientista brasileira Vanessa Penna, de 43 anos. Mesmo enfrentando os desafios de recomeçar a vida como imigrante em um novo país, ser uma mulher atuando em uma área profissional predominantemente masculina, e se adaptar a uma condição de saúde rara, nada a impediu de se destacar na ciência, contribuir para a saúde pública e promover uma sociedade mais inclusiva.
Mudança de profissão e busca por bolsas internacionais
Após seis anos trabalhando como dentista no Brasil, Vanessa decidiu mudar de carreira e de país. Ela voltou para as salas de aula e se formou em Biotecnologia, concluiu um mestrado em Engenharia de Tecidos e passou cerca de um ano pesquisando como conseguir uma bolsa de estudo internacional para um doutorado.
“A minha intenção era poder ajudar mais pessoas do que eu ajudava como dentista - por isso, quis me tornar cientista”, conta ela.

Vanessa Penna foi a terceira pessoas no mundo a ser diagnosticada com a doença HSP 5 A pura, que lhe obriga a usar cadeira de rodas.
“Fiz um doutorado em neurociência pago pelo governo australiano”
Para alcançar seu objetivo, Vanessa aplicou para bolsas em cerca de 60 laboratórios ao redor do mundo e pesquisou como poderia contribuir para cada um deles.
“Cada e-mail era personalizado, porque eu lia os artigos de cada laboratório, entendia como meu conhecimento dialogava com o trabalho deles e só então escrevia. Mandar o mesmo e-mail para todos laboratórios não funciona. Quanto mais específico, maiores as chances de conseguir”.
No total, cinco laboratórios responderam os seus e-mails, e dois a aceitaram. Ela escolheu a Universidade de Melbourne, onde concluiu o doutorado em neurociência.
Primeiro emprego e ascensão na pesquisa clínica.
Vanessa começou a aplicar para vagas antes mesmo de terminar o doutorado. “Só para me preparar e entender como funcionavam os processos”. Depois de um ano, conseguiu seu primeiro emprego na área, em uma função administrativa.
“Era um cargo bem básico, quase como uma assistente, cuidando da documentação. Precisei engolir o orgulho e aceitar começar pela primeira porta que se abriu na indústria farmacêutica”, relembra. “Acho que um pouco de humildade é essencial, principalmente para quem está começando em outro país”.
Ela cresceu rapidamente na carreira e hoje gerencia estudos clínicos, sendo o último deles, para um novo tratamento contra o câncer de próstata.
Tecnologia promissora contra o câncer de próstata.
“As pesquisas clínicas são essenciais porque representam o que chamamos de medicina baseada em evidências”, diz Vanessa.
Os participantes do estudo geralmente já esgotaram todas as opções de tratamento disponíveis, sem sucesso, e encontram nesta pesquisa, talvez, uma última esperança.
“Trabalho desde a elaboração do protocolo até a submissão para comitês de ética e órgãos reguladores da Austrália e de outros países”, explica.
Ela também é responsável por selecionar os hospitais que conduzirão os estudos e por monitorar os resultados finais. O estudo que está em fase de testes tem potencial para revolucionar a abordagem do tratamento de câncer de próstata.
“É uma tecnologia relativamente nova. Ela usa anticorpos para direcionar a radiação diretamente às células cancerígenas, poupando as células saudáveis. O anticorpo reconhece uma proteína altamente expressa em câncer de próstata, chamada PSMA e entrega a radiação com precisão no tumor. Mesmo tumores muito pequenos, ainda invisíveis em exames de imagem, podem ser atingidos”.

Vanessa Penna a atuar no laboratório.
Durante seus estudos na Austrália, Vanessa começou a perder o movimento das pernas.
“Eu tive que sequenciar o meu genoma para descobrir o que eu tinha. Eu sou a terceira pessoa no mundo com esta doença específica que o nome curto é HSP 5 A pura. Quando eu tinha 23 anos, comecei a ter dificuldade para correr. Eu fui a vários neurologistas para tentar entender o que estava acontecendo e demorou 14 anos para eu ter meu diagnóstico correto. Nesse meio tempo, os sintomas foram piorando. No começo eu andava com uma bengala, depois comecei a usar duas muletas e finalmente a cadeira de rodas nos últimos sete anos”, afirma.
Transição com apoio familiar.
Vanessa chegou à Austrália em 2015, na época, casada com um brasileiro.
“Minha transição para a cadeira de rodas aconteceu aqui. Vim casada com um cadeirante, e foi ele quem me ensinou o básico. A ajuda dele fez muita diferença nesse processo. Eu não imaginava que algo assim fosse acontecer comigo, e muito menos tão rápido”, ela conta no podcast.
“No início, usei a cadeira de rodas reserva dele. Muita gente acha que é simples usar cadeira de rodas na rua, mas não é. Tem degraus, rampas, obstáculos. E eu precisei aprender a me virar sozinha, já que nunca passei por uma reabilitação”.
A rotina no doutorado: resiliência no dia a dia do laboratório.
A adaptação também refletiu nas suas atividades dentro do laboratório onde fazia doutorado:
“Eu trabalhava com cirurgias em animais, então eu mesma tinha que carregar caixas pesadas com eles dentro, usando um carrinho enorme do tamanho de uma armário — tudo isso numa cadeira de rodas. E as portas dos laboratórios são do tipo air locked (com sistema de pressão que mantém o ar isolado, difíceis de abrir), então era difícil de abrir e ter mobilidade pelo espaço”.
“Emocionalmente e fisicamente, foi bem desafiador”.
Conquista da residência permanente por sua contribuição à ciência.
A trajetória bem sucedida em pesquisas clínicas levou Vanessa a conquistar a residência permanente via o visto de Talento Global, atualmente chamado de visto de Inovação Nacional.
“Essa área de pesquisas clínicas é bastante necessária aqui, mas ainda há poucas pessoas com esse tipo de formação. Acredito que o meu trabalho foi fundamental para eu conseguir a residência permanente”, explica.
Vanessa fez todo o processo de imigração por conta própria: “Falei com vários agentes de imigração e advogados, mas muitos estavam mal informados sobre como obter residência para uma pessoa com deficiência. Por isso, decidi aplicar sozinha”.
Preconceito: Brasil x Austrália.
Ela destaca a diferença de percepção em relação a PCD (pessoa com deficiência física): “Tenho a perspectiva de quem já viveu com e sem deficiência, então, percebo com clareza como as pessoas me tratam diferente e às vezes nem percebem que estão sendo preconceituosas”.
Na Austrália, segundo Vanessa, as políticas públicas voltadas à inclusão são mais efetivas do que no Brasil:
"Aqui, há uma tentativa maior de promover igualdade. A assistência governamental é voltada para reabilitação, para ajudar a pessoa a ser produtiva. Já no Brasil, a assistência muitas vezes parece partir da ideia de que a pessoa com deficiência não consegue ser produtiva”.
Mas o preconceito, embora diferente nos dois países, ainda existe: “Aqui, é mais sutil. Eu percebo olhares ou comentários. No Brasil, é escancarado. As pessoas falam comigo como se eu tivesse deficiência cognitiva, usam voz de criança. Em lojas, quando quero comprar algo, falam com quem está ao meu lado, e não diretamente comigo”.
Educação e informação para uma sociedade menos preconceituosa.
“Minha profissão não exige que eu corra uma maratona. Por que eu não poderia fazer meu trabalho tão bem quanto qualquer outra pessoa?”, ela questiona.
Para Vanessa, o preconceito muitas vezes nasce na falta de informação.
“Acho que o preconceito tem a ver com a pouca educação e exposição das pessoas à deficiência. Para mudar isso, é preciso falar mais sobre o assunto, e mostrar o ponto de vista de quem vive com deficiência. Quanto mais informação, mais a sociedade normaliza este tema”.
Conselho para quem quer migrar de profissão e país.
Vanessa escolheu a ciência e a mudança de país para realizar o sonho de ajudar mais pessoas.
Ao longo de uma década marcada por desafios pessoais e conquistas profissionais, ela construiu uma carreira que contribui diretamente com a pesquisa clínica e com pacientes em situação de vulnerabilidade.
“Você precisa ter um plano de longo prazo e alternativas caso algo dê errado, porque as coisas raramente saem como planejado. O importante é focar em pequenos passos e conquistas, em vez de olhar só para o objetivo final. No meu caso, desde que deixei a odontologia até conseguir a minha residência permanente aqui, foram 10 anos. Resiliência e persistência são fundamentais”.
Ela encerrou a entrevista com uma mensagem a quem deseja mudar de profissão e de país:
“Não confie o seu futuro a outras pessoas sem entender o básico, como as opções de residência permanente e os processos envolvidos para mudar de profissão. Quanto mais você delega os momentos importantes da sua vida, mais arriscado fica. Ninguém vai cuidar do seu futuro com o mesmo cuidado que você mesmo”.
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