Lara Gonçalves é algarvia, tem 30 anos e, em junho deste ano, mudou-se para o Japão com Júpiter, o seu gato. Lara está a viver em Tóquio, na área de Shinjuku, a partir de onde nos fala hoje. Esta apaixonada por anime garante estar a viver a aventura da sua vida, mas não mente: aprender a manusear chopsticks é muito mais fácil.
No episódio de hoje, vagueamos pelo Japão, por isso, está garantido sushi, ramen e caril. À boleia de Lara Gonçalves, ficamos também a conhecer os desafios implícitos a um salto de fé desta envergadura. Aprender japonês, estabelecer relações genuínas tão longe de casa, lidar com a solidão, estímulos que não cabem nas 24h diárias, casas-de-banho inteligentes, e tanto mais.
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Lara Gonçalves
Eu ainda não tinha saído do carro, estava só a ver Tóquio pela janela, e pensei: não, é isto mesmo, estou no sítio certo.Lara Gonçalves
Como é que surge então esta ideia de ires para o Japão?
A ideia de ir para o Japão sempre foi uma ideia muito presente desde que eu era criança. Eu acho que por causa dos animes, como a maioria das pessoas. Eu via muito anime quando era mais nova, agora já nem tanto, infelizmente. Mas começou assim a crescer este gosto pela língua japonesa. E depois, à medida que fui conhecendo mais sobre o Japão, pelo Japão em si, também. Eu já há muitos anos gostava de ver vlogs de pessoas que viviam aqui, tours de casas de pessoas que viviam aqui, passava horas no YouTube a ver essas pessoas e esse tipo de conteúdo. E a sonhar que um dia fosse eu. Depois, há cerca de um ano e meio, dois anos, comecei a ter aulas de japonês em Portugal. Tinha aulas online uma hora por semana.
Estava em Portugal com um trabalho estável, que eu consigo fazer a partir de qualquer sítio, que ganho relativamente bem. Na altura, eu tinha uma relação que terminou. O meu professor de japonês já vivia aqui no Japão há algum tempo e estava constantemente a falar do país. Essa vontade começou a crescer e, quando a relação terminou, para mim foi: “é agora ou nunca”. Não tenho nada que me prenda aqui.
Não houve grandes dúvidas sobre a cidade para a qual irias, ou houve?
Não. Tóquio é Tóquio. É a capital, tem tudo aqui, é uma zona central. Se eu quiser ir a algum lado, penso que seja muito mais fácil a partir daqui.
O que é que te apaixona tanto em Tóquio?
Honestamente, é tudo.
Eu adoro Tóquio à noite, adoro os prédios grandes, as luzes, a confusão, os neons, adoro que a cidade seja tão conveniente.Lara Gonçalves
De todas as formas e mais algumas. As lojas de conveniência estão no top 1. São lojas que estão abertas 24 horas por dia. A cada 50 metros há uma loja de conveniência. Obviamente, isto é uma hipérbole, mas há muitas lojas de conveniência mesmo que vendem de tudo e mais alguma coisa, a qualquer hora da noite. Vou todos os dias vou à loja de conveniência, nem que seja para ir buscar um café, ou um batido, ou um onigiri. Os transportes são muito convenientes também, funcionam muito bem. Tanto metro, como comboio, como autocarros. Funciona tudo extremamente bem.
Além disso, eu sinto que todas as ruas que eu passo são bonitas. Seja na zona turística, seja fora da zona turística. Gosto que a cidade tenha tanta natureza e os parques, que é uma coisa que eu não estou muito habituada na minha cidade. Obviamente há natureza, há árvores, há parques, mas não como há aqui.

Lara Gonçalves
Não é fácil trazer um animal para o Japão. Eles são mesmo muito restritos aqui, muita burocracia. Eu estava muito assustada. Antes de vir para o Japão, eu andava a ter ataques de ansiedade praticamente todos os dias. Muito porque eu não conhecia o país. É a primeira vez que estou no Japão. Podia perfeitamente iludir-me com tudo aquilo que pensava que isto era.
Estava com muito medo de estar aqui sozinha, mas especialmente, estava com muito medo que acontecesse alguma coisa de errado com o meu gatinho na viagem. Que alguma papelada não estivesse correta e que ele fosse mandado para o porão. E também havia a possibilidade de eu chegar aqui com ele e ele ter que ficar seis meses de quarentena num sítio que não é a minha casa. Isso para mim seria um problema muito grande.
O que é que te fez decidir à partida que ele viria contigo?
Eu não queria estar a viver dois anos longe do meu gato. É o meu bebé, ele vive comigo, ele está muito habituado a mim. Mesmo em Portugal ele vivia comigo. Ele é um gatinho muito carente, vamos pôr assim. Ele gosta muito de mim e de companhia. E eu mesma queria também companhia, portanto, não me fazia sentido vir para o Japão sem o meu gato. Para além de que ele já está a ficar velhinho, eu quero aproveitar o meu tempo com ele. Portanto sim, quis correr o risco de o trazer.
Vieste então com um plano a dois anos, é isso?
Um ano e nove meses, mais precisamente. Através de um visto estudante.
E então, tinhas muita ansiedade, estavas nervosa. Como é que foi, finalmente, chegar ao Japão? Qual foi o primeiro impacto? Essa ansiedade foi-se esvaindo, tiveste logo certezas do sítio onde estavas?
Eu tive certezas, ainda não tinha saído do táxi para chegar ao meu AirBnB. Ou seja, do aeroporto para o AirBnB, eu ainda não tinha saído do carro, estava só a ver Tóquio pela janela, e pensei: “não, é isto mesmo, estou no sítio certo”.
Porquê? O que é que te fez sentir tão confortável?
Eu não consigo explicar, mas acho que era tudo aquilo que eu estava ver. Era mais do que aquilo que eu sonhei. Eu acho que o facto de ser uma cidade grande, como eu estava à espera, os edifícios grandes... Mas depois, olhamos para aqueles becozinhos e tem aqueles restaurantes muito típicos. No fundo, eu acho que é o contraste entre o moderno e o tradicional. Ainda hoje em dia, eu gosto dos prédios grandes, porque na minha cidade não tenho disso.
Tu escolheste o bairro Shinjuku para viver? Já tinhas à partida essa ideia?
Eu estava em contacto com um agente imobiliário já desde Portugal e ele estava a ajudar-me a procurar casas. Vimos casas em vários sítios. Esta foi a escolhida, mas nem sequer foi pelo sítio. Shinjuku é muito, muito grande. Eu gosto muito, sinto que vivo numa zona muito conveniente. Consigo chegar a qualquer lado no espaço de 30 minutos. Tenho muitas linhas à minha disposição aqui. Há muitos restaurantes também aqui nesta área, muitos negócios.

Lara Gonçalves em Quioto.
Eu estou a viver o meu sonho. Eu acho que no fundo é isso, eu estou a viver o sonho, eu estou a viver a maior aventura da minha vida.
Como é agora a tua rotina?
Neste momento, a minha rotina passa por acordar, despachar-me, ir para as aulas. Depois das aulas, vou para este café/ restaurante que está aberto até às 11 da noite, porque eu não tenho tempo a cozinhar. Então, vou para o restaurante, que é extremamente barato, tem uma imensa variedade e está aberto até tarde. Trabalho até às 11 da noite, depois venho para casa e, no dia seguinte, volto a repetir tudo.
Estás a fazer quantas horas de aulas por dia?
São quatro horas.
A aprendizagem da língua está a ser um desafio?
Já foi mais fácil. Confesso que, muitas vezes, eu pergunto-me o que é que eu estou aqui a fazer, porque eu sempre fui horrível a aprender línguas. Eu sempre tive muita facilidade em aprender, mas sempre tive muita dificuldade em aprender línguas. Confesso que está cada vez mais difícil. Para quem não sabe, o kanji é um dos sistemas de escrita do japonês, proveniente do chinês. Diria que o mais difícil, o mais complexo, era assim o grande monstro para mim. Neste momento, o kanji é aquilo que eu gosto mais. Portanto, só isso já diz muito.
Eu acredito que seja desafiante, mas provavelmente deve estar a aprender muito.
Sim, realmente é um andamento rápido. É muito mais rápido do que eu estava à espera. Nós temos matéria nova todos os dias, ou seja, a matéria do dia anterior ainda não consolidou muito bem e já estamos a dar matéria nova. Sinto que deveria estudar mais fora das aulas e não consigo, porque preciso trabalhar.
Quando mudamos de país, inevitavelmente acabamos por passar mais tempo sozinhos, porque não temos a família por perto, nem os amigos mais próximos. Tu referes bastante isso na tua página de Instagram, mas falas sobretudo muito sobre estares sozinha sem te sentires só...
Tem dias que eu me sinto só. Não vou mentir, tem dias que eu me sinto sozinha. Mas, no geral, eu sou filha única. Aprendi desde muito nova a passar muito tempo sozinha, a aprender a entreter-me sozinha e a aproveitar o que o mundo tem para me dar. Há muita coisa para fazer aqui. Há muita coisa para eu ocupar a minha cabeça. Eu em Portugal passava muito tempo sozinha. Gostava de estar em casa. Eu tenho muitos hobbies. Arranjo sempre forma de me entreter. Há sempre muita coisa que eu quero fazer e nunca tenho tempo para fazer tudo aquilo que me apetece fazer. Aqui ainda mais. Porque aqui, para além dos meus hobbies, há sempre muita coisa para ver. Há muito entretenimento nesta cidade.
Tu há pouco falavas da rede de transportes, que é fantástica, mas eu também sei que pode ser um desafio. Já te perdeste no metro aí em Tóquio?
Sim e continua a acontecer.
Uma coisa que também se fala muito é sobre as regras nos transportes públicos, que são bem diferentes daquelas a que estamos habituados em Portugal. Houve algum choque cultural relativamente a esta cultura, nesses detalhes?
Não, e ainda digo mais. Eu vejo pessoas a reclamarem das regras do Japão nas redes sociais e eu não consigo perceber porquê. Porque eu acho que essas regras deviam ser implementadas em todos os países. Em Portugal, eu odeio ir num transporte público e a ir ouvir a chamada a pessoa que está à minha frente, ou até mesmo do outro lado do autocarro, que vai aos altos berros a falar o caminho inteiro. Tóquio é uma cidade que, por si só, tem muito estímulo a toda hora. É normal que, ao final de um dia de trabalho, queiramos silêncio e descanso. Além de que os transportes públicos já são demasiado estímulo por si só. Portanto, sim, é ótimo irmos nos transportes, haver silêncio e estar cada um na sua bolha. Eu gosto disso.

Lara Gonçalves e Júpiter, o gato com o qual vive no Japão.
As pessoas perguntam-me muito: o que é que está a ser mais difícil aí? A resposta é: tudo está a ser mais difícil aqui, mas tudo está a ser mais incrível aqui.Lara Gonçalves
Para quem não está a par, não é tão conhecedor da cultura japonesa, podes salientar alguns pontos sobre estas regras ou estes princípios que definem a cultura japonesa? As regras mais predominantes são, definitivamente, silêncio nos transportes, silêncio nos elevadores, o ficar de um só lado da escada rolante. Outras regras, o lixo. O lixo é uma coisa que nós temos que carregar connosco, porque não há baldes do lixo na rua. Diria que é uma das coisas mais inconvenientes no Japão mas tem o seu motivo. O facto de não haver baldes de lixo na rua, para toda a gente misturar o lixo, faz com que a reciclagem aqui funcione de uma forma muito mais eficiente.
E já assim há alguma coisa que tu sintas falta, relativamente a Portugal?
Sinto falta dos meus amigos e da minha família, sinto falta do povo à lagareiro da minha avó. Sinto falta da minha casa, porque eu sempre disse que adorava casas pequenas, que é fácil limpar e manter, mas eu não acho, porque na verdade uma casa pequena, quando algo está fora do sítio, já está tudo desarrumado. Sinto falta da minha vida aborrecida em Portugal, mas do género, ir uma semana passar férias e voltar para aqui.
Tu agora só pensas em voltar a Portugal quando o visto acabar? Ou seja, em 2027?
Sim, porque eu vim com este objetivo de estudar e de conhecer o país durante as minhas férias, que não são muitas, portanto, não está nos meus planos gastar dinheiro e desperdiçar tempo a ir a Portugal. Estou deixar a vida acontecer, porque a minha vida já mudou tanto em quatro meses, eu sinto que já estou aqui há um ano... Acho que não faz sentido estar a fazer planos para daqui a mais de um ano.
E tendo em conta tanta mudança, tudo isto que tem acontecido nos últimos quatro meses, como é que tu descreves esta fase da tua vida?
Eu sempre disse que admirava as pessoas que estudavam e trabalhavam ao mesmo tempo, que era uma coisa que eu nunca conseguiria fazer. Ao vir para cá, estou a estudar, estou a trabalhar, tenho o Instagram, que acaba por ser meio que um trabalho part-time também... Agora também quero começar no Youtube... Tenho uma vida social muito mais ativa do que tinha em Portugal e estou a tentar manter o ginásio. Portanto, a minha vida mudou completamente. Como é que eu iria descrever? Eu estou a viver o meu sonho. Acho que, no fundo, é isso. Eu estou a viver o sonho, estou a viver a maior aventura da minha vida, em todos os aspetos. Tem sido incrível por um lado, mas tem sido extremamente difícil por outro.
As pessoas perguntam-me muito: o que é que está a ser mais difícil aí? A resposta é: tudo está a ser mais difícil aqui, mas tudo está a ser mais incrível aqui. É muito difícil de descrever. Eu não consigo pôr por palavras muito precisas.
Ficas assoberbada até, não é? Com tanta coisa a acontecer ao mesmo tempo.
Sim, sem dúvida.
E quando dizes que tem sido muito difícil, quais têm sido os teus maiores desafios?
Agora, eu diria que a parte mais difícil tem sido, para além da aprendizagem da língua, que está cada vez mais difícil, eu diria as relações aqui. Eu continuo a conhecer pessoas, conheço pessoas novas praticamente todas as semanas. Quando vim para cá, tive muito medo de não fazer amigos ecomecei a fazer amigos muito rapidamente, mas agora, com o tempo, comecei a perceber que a maior parte das relações, não todas, mas a maior parte, são muito superficiais.
Eu não percebo se isto é uma questão de geração, que eu acho que é, mas acho que também é uma questão de ser uma metrópolee quanto mais pessoas há num sítio só, mais superficiais se tornam as relações. É a minha opinião. É aquilo que eu estou a perceber agora, não sendo eu de uma metrópole em Portugal.
Diria que, se calhar, é um dos choques que eu estou a ter aqui. Não diria que é um choque cultural, porque a maioria das pessoas que eu conheço aqui não são japonesas, são estrangeiras, de vários países diferentes. Portanto, eu não diria que é um choque cultural do Japão.
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