Quando Jeremy Fisher se mudou para Sydney, precisou passar várias vezes em frente à porta do Clube de Apoio Gay da universidade antes de criar coragem para entrar. Era 1973, e ele tinha medo de ser “tirado do armário” por conta da sua orientação sexual, mas tinha coragem suficiente para procurar pessoas como ele.
Vindo da cidade de Kyogle, na região dos rios do norte de Nova Gales do Sul, o então jovem de 18 anos estava empolgado com a vida na cidade grande, e com a chance de conhecer outros homens.
“Estando no clube e em grupos ativistas, fazíamos coisas que chamávamos de 'Zaps'. Entrávamos em ônibus e começávamos a nos beijar e abraçar, o que provocava várias reações nas pessoas. Mas a ideia era nos tornarmos visíveis e fazer com que percebessem que estávamos ali. Funcionava em diferentes graus. Algumas vezes fomos perseguidos na rua e houve agressões, mas essas eram algumas das ações que fazíamos”.
Apesar da empolgação e das expectativas com a vida na cidade, Fisher diz que aquele ano acabou tomando um rumo mais sombrio. Relembrando seu primeiro ano na Macquarie University, ele afirma que o entusiasmo inicial se dissipou rapidamente.
“As coisas ficaram um pouco mais sombrias para mim. Eu estava indo a bares gays no centro da cidade e conheci um cara que, na verdade, me agrediu sexualmente. Bom, na verdade não é ‘na verdade’, ele me agrediu. Isso me deixou deprimido, achando que havia algo errado, que eu não deveria estar vivendo esse tipo de vida. Então, tentei tirar minha própria vida naquele quarto. Fui encontrado por uma funcionária da limpeza, levado ao hospital, e depois o diretor da faculdade basicamente disse que eu só poderia voltar se aceitasse ser celibatário e renunciasse à homossexualidade.”
Fisher conta que essa não era uma condição que estava disposto a aceitar. Em vez disso, formou uma aliança improvável com operários que trabalhavam na obra da faculdade. Indignados com o tratamento recebido, eles votaram por paralisar as atividades em protesto. A votação resultou na primeira ‘pink ban’ (banimento rosa) da história, uma série de greves inspiradas nas ‘green bans’ (banimentos verdes) do movimento ambientalista, lideradas por sindicatos trabalhistas em apoio aos direitos da população LGBTQIA+.
“Você pensa em pessoas que trabalham em obras como caras meio rudes, bem masculinizados, com atitudes típicas. E, mesmo assim, quando foi colocado para eles que havia um cara sendo expulso injustamente da faculdade só por causa da sua sexualidade, eles disseram: ‘Isso não é certo. Isso não está certo.’ E apoiaram o protesto, o que foi algo notável”.
Apesar do apoio, ele conta que a administração da faculdade continuou se recusando a deixá-lo voltar. Ainda assim, ele se orgulha do barulho que fizeram. “Nesse sentido, a gente não venceu. Eu não fui readmitido na faculdade, mas houve uma grande comoção na época, por ter sido a primeira ação sindical em apoio aos direitos dos gays”.
Ele se formou em Educação e seguiu carreira no setor editorial, pelo qual recebeu a medalha da Ordem da Austrália em 2017. Mas sua vida voltaria a ficar obscura nos anos 1980. Na época, a homossexualidade ainda era criminalizada em Nova Gales do Sul, Queensland, Austrália Ocidental e Tasmânia, enquanto a crise da Aids assolava a Austrália e o mundo.
“Em 1982, a Aids já estava acontecendo. E aí foram muitos, muitos amigos que simplesmente se foram. Foi basicamente uma década, nos anos 80, muito triste, porque tanta gente estava morrendo. Você ia a funerais o tempo todo. Via pessoas muito doentes”.
Depois de perder tantos amigos próximos ao longo dos anos, ele considera que tem sorte. Diz que, se não tivesse tido uma segunda chance, teria perdido o que hoje considera uma vida incrível. “Eu não me sinto mal comigo mesmo, de forma alguma, e acho que ninguém deveria. Se alguém se sente assim, precisa buscar ajuda para entender que tem valor apenas por existir. Ninguém precisa achar que não deveria ser quem é só porque a sociedade, a família ou a igreja acham que há algo de errado com ela”.
Para Sallie Colechin, a descoberta de sua sexualidade aconteceu há cerca de 50 anos, quando se aproximou de um grupo de feministas. Criada em Sydney, a fotógrafa conta que teve uma adolescência bastante comum. Mas em 1975, ao participar de sua primeira Marcha do Dia Internacional da Mulher, em Sydney, ela foi apresentada a um mundo novo e empolgante.
“Depois voltamos para a Casa das Mulheres, em Sydney, e vimos um aviso sobre um jantar naquela noite com um grupo de mulheres em Annandale. Decidimos ir, e foi nesse jantar que ouvimos falar da Amazon Acres, uma fazenda feminina nas montanhas. Pensamos: ‘Ah, temos que visitar’, e foi o que fizemos”.
A fazenda exclusiva para mulheres, com a política de “sem homens, sem carne e sem máquinas”, apresentou a Sallie ideias muito mais radicais do que tudo o que ela conhecia até então. “Fomos até a Amazon Acres umas três vezes naquele ano, e foi aí que comecei a perceber que sentia atração por mulheres. Contei ao meu primeiro namorado que queria dar um tempo, o que não era exatamente verdade, mas enfim”.
Após se formar em 1976, ela e sua primeira namorada se juntaram ao coletivo organizador da 4ª Conferência Nacional Homossexual, em Sydney, além do Grupo de Solidariedade Gay. Em 24 de junho de 1978, o grupo organizou o primeiro Mardi Gras da Austrália. Eles não faziam ideia de que aquele dia acabaria em um tumulto.
Depois de receberem uma carta de um grupo de São Francisco, que na época organizava marchas pelos direitos LGBTQIA+ nos Estados Unidos, o Grupo de Solidariedade Gay começou os preparativos.
“Organizamos uma marcha pela manhã pelas ruas de Sydney para mostrar que não tínhamos direito no trabalho de assumir nossa sexualidade, e à tarde um fórum de debates no Paddington Town Hall, onde políticos e advogados falariam sobre o fato de ainda ser ilegal para homens se assumirem abertamente. Ainda era permitido demitir alguém por ser aberto sobre sua sexualidade.”
À noite, planejaram uma festa de celebração na rua, convidando as pessoas a se juntarem a eles. Com um pouco de apreensão, o grupo começou a caminhar pela Oxford Street, convocando as pessoas a saírem dos bares para as ruas, e muitas atenderam ao chamado. Cerca de mil pessoas, entre LGBTQIA+ e aliados, participaram da parada naquele dia.
Apesar de terem autorização para marchar, Sallie Colechin conta que a polícia interrompeu a manifestação, prendendo e agredindo os participantes. “Os policiais não usavam seus números de identificação, então não podíamos identificá-los. Isso gerava muita preocupação, porque, na época, as lixeiras eram de metal. Pessoas eram puxadas para os lados, jogadas nas viaturas. Algumas corajosas conseguiam fugir. Outros eram jogados contra as paredes das viaturas. Havia muita violência. A polícia estava muito agressiva.”
Naquela noite, 53 pessoas foram presas. Nos dias seguintes, muitos tiveram seus nomes, endereços e profissões divulgados pela mídia. Vários perderam seus empregos e outros, tomados pela vergonha e pelo medo de serem expostos, tiraram a própria vida.
Sallie Colechin e um grupo de pessoas arrecadaram dinheiro para pagar a fiança dos amigos. “Ver e testemunhar a cacofonia de sons das lixeiras sendo usadas como armas, e pessoas sendo jogadas contra as viaturas, foi absolutamente assustador. E depois passar a noite inteira sem celular, sem caixas eletrônicos — tivemos que arrecadar dinheiro nas casas das pessoas, das vaquinhas, do aluguel, para garantir que todos fossem libertados.”
Quase 50 anos depois, Sallie Colechin reflete que, de certa forma, a experiência foi “incrivelmente unificadora”. “Por causa daquele tumulto, realmente nos unimos e nos apoiamos nos meses seguintes. Foi um período incrível, e me sinto muito orgulhosa de ter feito parte disso.”
Hoje em dia, Sallie Colechin diz que se distancia da parada anual do Mardi Gras. Para ela, o senso de comunidade em torno do evento não perdurou. “Certamente, minha impressão do Mardi Gras nos anos 2000 é que ele ficou com um foco comercial demais para o meu gosto, um pouco exagerado no aspecto da festa. Acho que quando comemoramos o 20º aniversário, muitas pessoas disseram que nós trouxemos a política de volta para a parada.”
Para ela, é importante que as pessoas nunca esqueçam a violência daquela noite. “Até hoje, a polícia trata homens homossexuais de forma terrível, e às vezes as mulheres lésbicas também. Eles também tratam os povos indígenas de maneira inadequada. Por isso, não acredito que a polícia deva desfilar em uniforme e com um estandarte policial no nosso Mardi Gras.”
Quando Katherine Wolfgramme contou à família que estava iniciando sua transição para mulher, diz que eles não ficaram surpresos. “Sempre acreditei que era uma menina, desde muito pequena. Nunca acreditei que fosse um menino. Meu cérebro acreditava com todas as forças que eu era uma mulher.”
Nascida em Fiji em 1972, Wolfgramme mudou-se para a Austrália com a família aos dois anos de idade. Na infância, foi punida por expressar sua verdadeira identidade de gênero.
“Tentei contar para as pessoas quando era criança, mas fui punida por dizer que na verdade era uma menina. Então, sabia que tinha que esperar ficar mais velha, e ninguém ficou muito surpreso quando eu comecei a transição. Não foi um choque para ninguém. Acho que o grande choque veio quando me tornei uma garota bonita. Aí foi que todo mundo ficou meio surpreso, porque presumiam que eu não iria ser.”
Aos 18 anos, Katherine começou a viver como ela mesma, saiu de casa e foi morar no seu cantinho, no centro de Melbourne. Em 1990, uma viagem a Sydney para o Sleaze Ball anual, uma festa queer elaborada e de arrecadação de fundos para o Mardi Gras, marcou um momento importante para ela. “Foi a primeira vez que vi mulheres trans comendo e convivendo abertamente, sentindo-se seguras e confortáveis para fazer compras e tudo mais. Parecia um refúgio.”
A viagem a incentivou a se envolver na defesa e visibilidade das pessoas trans, trabalho que ela vem realizando há 35 anos. Katherine Wolfgramme fez história em 1997 ao se tornar a primeira pessoa trans a mudar legalmente seu nome em Fiji, motivada, em parte, pelo amor.
“Depois de cerca de cinco anos tomando hormônios, me tornei uma jovem bonita e conquistei um homem muito bacana, um solteiro cobiçado. Ele trabalhava com fundos de investimento e me encantou. Eu poderia ter acabado nas ruas, mas não aconteceu. Ele queria que eu viajasse com ele, mas eu não podia viajar usando um nome masculino porque não queria envergonhá-lo. Não era sobre mim, era sobre ele e nosso relacionamento. Então, tive que voltar a Fiji para pedir um nome feminino.”
Ao decidir entrar em contato com o governo fijiano para mudar seus documentos, ela começou ligando diariamente à embaixada em Camberra. Depois de várias chamadas, eles pararam de atender. Ela então voou para Fiji, mas o governo se recusou a recebê-la, deixando-a presa em um hotel por semanas. Uma ligação para o tio dela em Fiji foi um ponto de virada. Com suas conexões, ele conseguiu um agendamento com um contato do governo, e ela finalmente teve permissão para mudar seu nome.
Ela diz que o apoio da família fijiana não só ajudou a garantir o novo nome legal, mas tem sido um grande conforto em sua vida. “As pessoas trans fazem parte da vida em muitas culturas do Pacífico. Não é algo incentivado, mas também não é tratado como se não existisse.”
Ela afirma que a transfobia em culturas do Pacífico muitas vezes está ligada à colonização. Apesar das tentativas de alguns grupos de reduzir os direitos das pessoas trans, ela se diz otimista em relação aos avanços conquistados.
“Tenho acompanhado a política e seu pêndulo: ele balança para a esquerda, depois para a direita, e para a esquerda novamente. A esquerda avança quatro passos, a direita recua dois, mas nunca volta quatro passos, só dois. Então a esquerda avança mais quatro, e a direita recua mais dois. Mesmo hoje, com J.K. Rowling e Donald Trump, estamos muito melhor do que estávamos há 20 anos.”
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