As Drag Queens habitam os palcos há muito tempo e esta arte é mais antiga e tradicional do que você imagina. Para ser mais preciso, desde a Grécia antiga, 500 A.C., quando apenas os homens eram autorizados a interpretarem os personagens no teatro e as mulheres eram proibidas de serem atrizes.
Desta forma, os homens se vestiam de mulheres para interpretarem os personagens femininos. E isso também era regra na Inglaterra antiga, no século XVI, nas peças teatrais de William Shakespeare, por exemplo, nas quais os personagens femininos eram interpretados por meninos ou adolescentes vestidos de mulheres. Para quem assistiu ao filme de Hollywood, Shakespeare Apaixonado, no qual a atriz Gwyneth Paltrow ganhou o Oscar em 1998 pela sua interpretação, vai se lembrar disso.
Na história, a personagem se passa por um homem para enganar o diretor e sociedade para, assim, poder subir nos palcos e realizar o seu sonho de ser atriz. Em todos os casos, as maquiagens usadas pelos homens que personificavam os personagens femininos eram exageradas, com perucas, espartilhos, saltos altos e vestidos longos e pesados, que os atores tinham que “arrastar” pelos palcos.
E foi assim que surgiu o termo “drag”, que significa “arrastar” na língua inglesa. Com o passar dos anos, a comunidade LGBTQIA+ acrescentou a palavra queen ao nome, que significa “rainha” em português, e o termo passou também a ser conhecido como Drag Queen.
Para entendermos a dimensão desta categoria artística, quem é fã do programa RuPaul’s Drag Race, uma competição de Drag Queens original dos Estados Unidos, sabe que este programa de TV conta com franquias em diversos países, inclusive, na Austrália e no Brasil, além da França, Holanda, México, Tailândia, Itália, Filipinas, Bélgica, Espanha, Inglaterra, Chile e Suécia.
O sucesso do programa é tanto, que a Drag Queen RuPaul já ganhou o prêmio Emmy como melhor apresentador de reality shows por oito anos consecutivos, um marco nunca antes alcançado por nenhum apresentador do mundo, contando atualmente com mais de 5 milhões de seguidores no Instagram, enquanto a Drag Queen brasileira Pabllo Vittar tem mais de 12 milhões de seguidores nesta rede social.
A profissão de Drag Queen, é claro, enfrenta diversos obstáculos, assim como outras categorias artísticas - sendo o preconceito, infelizmente, um desses fatores. Geralmente, os trabalhos são realizados em bares e casas noturnas com shows e performances envolvendo danças e interpretações musicais ou, por vezes, até em livrarias ou bibliotecas lendo histórias para crianças e as suas famílias. Mas como será que é ser um imigrante e também uma Drag Queen vivendo na Austrália? Para descobrir, entrevistamos a Luna Sparks, de Sydney, e da Donatella Valentino, de Adelaide.
Felipe Oliveira, 30 anos, o criador da Drag Queen Luna Sparks

Felipe Oliveira, 30 anos, o criador da Drag Queen Luna Sparks
Desde pequeno eu sempre gostei de me apresentar, me expressar e ser o centro das atenções. Quando eu tinha 13 anos os meus pais me colocaram em um curso de teatro profissionalizante e depois eu comecei a dançar fazendo aulas de jazz e ballet.
Quando eu me mudei para a Austrália, em 2014, eu não sabia muito bem o que era a arte Drag até começar a assistir competições e também chegar a participar de duas delas. Porém, mesmo amando essas experiências, eu ainda não tinha certeza sobre virar Drag por achar a ideia esquisita devido à nossa sociedade, que sempre criticou e tratou Drag como algo errado e negativo.
Mas aí a minha percepção mudou completamente quando eu comecei a assistir o programa RuPaul's Drag Race. O show me ajudou a entender o que é ser Drag, eu assistir todas as temporadas e para mim foi nítido que é isso o que quero fazer como artista. Resumidamente, eu comecei a me montar como Drag há uns nove anos, mas eu faço isso profissionalmente há mais de seis anos.
A arte Drag e o que ela representa para mim
Para mim, Drag representa liberdade artística. É uma arte onde você pode ser o que quiser e expressar diversos talentos ao mesmo tempo. Não importa sua nacionalidade, a sua aparência física, ou gênero - qualquer pessoa pode criar seu personagem para se expressar. É por isso que eu me apaixonei por esta arte, porque ela não tem limites, você pode fazer o que você quiser dentro desta plataforma.
Ser Drag também me ajudou com a minha auto-estima e amor próprio, pois esta personagem da Luna Sparks fortaleceu o amor próprio do Felipe, eu até passei a gostar de partes do meu corpo que antes eu não gostava. Então, a arte Drag realmente tem este poder de transformação, pois você passa a olhar para dentro de si e usa estas partes para se expressar.
Minha família sabe e me apoia nesta profissão
Eu sou muito grato por ter uma família incrível, que atualmente me oferece suporte e muito amor, independente da minha carreira. Porém, este processo não foi fácil no início, pois a gente conhece a famosa expectativa de grande parte das famílias brasileiras que deseja que os filhos homens sejam jogares de futebol, ou médicos ou advogados. Tem um pouco esta pressão. Então, primeiro você se assumir como gay e depois também dizer que trabalha como Drag Queen, não é uma coisa muito fácil de as pessoas entenderem ou aceitarem. Então, este processo foi um pouco difícil neste sentido. Mas, graças a Deus, eu nunca tive nenhum problema com a minha família. Nós tivemos algumas conversas para que eles entendessem, me aceitassem e sempre me deram muito suporte.
Eles ainda não conseguiram ver a Luna Sparks pessoalmente, porque eu nunca fiz Drag no Brasil. Então, eles me acompanham pela internet e social media, e me dão suporte da maneira que eles podem e conseguem.
Momento especial na minha trajetória profissional
Eu já fiz muitos eventos legais como Drag Queen aqui na Austrália, mas o evento mais gostoso de participar é o Mardi Gras, que é a Parada Gay aqui de Sydney. Eu participo do grupo Fruits From Brazil, que é um grupo formado por brasileiros que fazem parte da comunidade LGBTQIA+ vivendo aqui na Austrália. E nós temos um bloco dentro do Mardi Gras, e é muito bacana poder me apresentar como Drag e representar a nossa cultura brasileira. A gente sempre traz um tema que representa o Brasil, e nesta última edição de 2024, o tema foi Festa Junina. E ver a reação da platéia, tanto de australianos como também de outras nacionalidades, assistindo e curtindo a nossa dança, que é algo muito cultural para gente, foi muito incrível.
Drag Queens lendo livros para crianças em bibliotecas
Eu já trabalhei nos últimos anos como educador infantil em creches aqui em Sydney, então eu tenho experiência com leitura de livros infantis para crianças. Então, eu fui convidado para participar do World Pride ano passado, junto com o Mardi Gras, lendo livros infantis para crianças e famílias. E eu posso dizer que foi um momento mágico, pois a criança não tem maldade, ela está ali vendo você como Drag, com aquela pureza e felicidade - não tem palavras para explicar. Foi muito bacana fazer este evento e, obviamente, a gente tratou de temas como aceitação e a representatividade da comunidade LGBTQIA+. O propósito é trazer esperança e brilho para estas novas gerações
Eu acredito que ninguém nasce com preconceito, e isso é uma coisa que aprendemos ao longo da vida. Desta forma, é muito importante que as crianças tenham este contato e vejam a profissão de Drag Queen como uma arte, assim como o palhaço, um mágico, um ator ou bailarino. Sinceramente, eu acho muito triste esta situação que estamos vivendo no mundo atual, em que alguns países estão banindo Drag Queens de trabalharem ou de lerem livros para crianças. Isso não faz sentido! Nós estamos simplesmente mostrando uma outra parte da vida para estas crianças, para elas entenderem que existem outras comunidades que precisam ser representadas. Eu acredito que nenhum arte deva ser proibida.
Imigrante e Drag Queen na Austrália
Ser imigrante já é muito difícil. Obviamente a minha experiência é com a Austrália, mas eu acredito que ser imigrante seja desafiador em qualquer parte do mundo. Então, juntando isso com o desafio de se criar uma carreira sendo Drag Queen, fica um desafio gigante.
O fato do inglês ser a segunda língua já é um grande obstáculo e, às vezes, isso te impede de conseguir trabalhos nesta área, pois você tem que falar e ter um contato direto com o público segurando um microfone. Mas a parte legal é que em Sydney temos bastante diversidade dentro na comunidade Drag, pois temos draga de todas as partes do mundo, mas infelizmente vemos que as Drags australianas acabam tendo mais oportunidades de empregos do que a gente.
A vida Drag é muito noturna e basicamente as oportunidades estão nas festas, nas baladas e na noite, inclusive, durante a semana. E ter que trabalhar no dia seguinte cedo para pagar as contas, pagar o visto, e pagar a escola e outras contas fica uma combinação muito difícil.
E eu sempre tive este problema e ainda tenho, que é poder juntar o trabalho de Drag com outros trabalhos que acabam pagando as minhas contas. Por mim, eu adoraria poder viver apenas da Luna Sparks, mas eu ainda não consegui atingir isso.
Vinicius Apollinarie, 27 anos, o criador da Drag Queen Donatella Valentino

Vinicius Apollinarie, 27 anos, o criador da Drag Queen Donatella Valentino
Eu faço Drag desde quando terminei o ensino médio em 2015, então são quase 9 anos. Eu comecei fazendo alguns shows na única balada destinada para o público LGBTQIA+ em minha cidade natal, Feira de Santana, na qual os donos viram potencial em mim e, sempre que podiam, me davam o espaço para que eu pudesse apresentar a minha arte.
A arte Drag Queen
Drag é uma arte brilhante que te possibilita se transformar numa pessoa totalmente diferente e, muitas vezes, na sua melhor versão. Eu amo estar nos palcos e interagir com as pessoas, pois eu desejo espalhar muito amor. Além disso, Drag é uma forma de arte na qual qualquer pessoa pode fazer, não importa o gênero, a orientação sexual, o porte físico ou a etnia. Drag é uma arte livre. Drag é expressão de sentimentos, uma paixão pela vida e também um ato político. Nós vivemos num mundo em que ser gay é crime em mais de 60 países. Então, quando eu coloco uma peruca, maquiagem, salto salto e me apresento em um palco publicamente, eu estou promovendo uma mensagem de igualdade social na qual eu exerço o meu direito de expressão e de liberdade para ser quem eu quiser.
Apoio da família - “Donatella fã número 1”
No inicio, eu tive que esconder da minha família que eu trabalhava como Drag Queen, principalmente da minha mãe, porque morávamos somente eu e ela, e eu não sabia como seria a sua reação. A arte Drag ainda era um tabu e pouco divulgada há mais de 9 anos. Em alguns momentos eu tive que me montar nas baladas ou até mesmo nas ruas. Infelizmente, esta foi uma realidade para mim, pois eu não me sentia seguro em contar para a minha mãe naquele momento.
Mas depois que a minha mãe descobriu, pois eu mesmo contei para ela, para a minha surpresa, ela foi super receptiva e me apoiou muito. Ela assistiu a minha ascensão profissional aqui na Austrália e vibrava em todas as minhas conquistas. Inclusive, ela se auto-intitulava “Donatella fã número 1”, e eu posso confirmar que ela realmente era. Infelizmente, ela faleceu ano passado, mas eu acredito que ela ainda continua torcendo por mim, seja onde ela estiver. Quando eu sinto falta das palavras dela, eu leio as lindas mensagens que ela me mandava após assistir as minhas performances
Trabalhos que eu sinto orgulho
Durante esses quase 9 anos de carreira, tive alguns eventos no qual me orgulho de ter participado, pois eu já tive também a oportunidade de dividir o mesmo palco com grandes nomes da comunidade Drag, como artistas conhecidos mundialmente por já terem participado do programa RuPaul’s Drag Race.
E, mais recentemente, eu participei de um campeonato Drag aqui na Austrália na qual ganhei 4 semanas consecutivas da competição e na final acabei levando o troféu de melhor Drag Queen. E, por último, tive a oportunidade de desfilar no Mardi Gras, em Sydney, este ano. Eventos como o Mardi Gras são de extrema importância para a comunidade LGBTQIA+, pois as pessoas precisam ver que existimos, e sempre estivemos aqui. Esse evento é a celebração de quem somos, e do futuro que queremos e merecemos, com uma sociedade igualitária para todos.
Relacionamento afetivo e a arte Drag
Infelizmente ainda existe preconceito em termos de relacionamento afetivo, pois alguns homens não gostam de se relacionar com pessoas que fazem a arte Drag. Eu acho que eles não entendem a arte e muitas vezes não fazem questão de querer entender também. Porém, eu sinto que isso varia muito de país e cultura, pois eu consigo ver que aqui na Austrália a maioria dos homens aceitam melhor em comparação com o Brasil e não se importavam em se relacionar com homens que fazem a arte Drag. Eu acho que isso varia muito entre os países e culturas, mas eu consigo ver que aqui na Austrália isso é muito mais tranquilo do que quando eu comparo com a minha vivência no Brasil.

Donatella participou de um campeonato Drag na Austrália na qual ganhou 4 semanas consecutivas da competição, levando o troféu de melhor Drag Queen.
Só faz Drag no Brasil quem realmente ama a arte, porque não é nada fácil conseguir produtos de boa qualidade e que sejam acessíveis para todos. E isso inclui maquiagem, perucas, figurino, salto alto, e muitas vezes enchimentos para dar a ilusão ótica de quadril mais largo e seios. Desta forma, o investimento financeiro é muito grande e nem todo mundo tem acesso a isso.
Já em relação ao retorno financeiro, muitas casas de eventos e baladas no Brasil não dão o suporte necessário para as Drags e muitas vezes não querem nem pagar cachê. Mas aqui na Austrália eu consigo ver que os empresários apreciam a arte e sabem que as Drags só têm a acrescentar para suas empresas e marcas.
Além disso, tem também a parte da segurança, porque aqui na Austrália podemos ser nós mesmos. Um exemplo disso é poder usufruir o transporte público e saber que nada de ruim irá nos acontecer. No Mardi Gras, em Sydney, eu usei o transporte público montada como Drag e foi super tranquilo, não me senti desconfortável em momento algum.
Imigrante trabalhando como Drag Queen
Às vezes é bem difícil por você ser uma pessoa de fora, um imigrante, então, isso pode te fechar algumas portas, não importa o quão boa você seja. Eu sinto que o mercado australiano ainda prefere dar visibilidade para artistas locais ou para alguém com nome já consagrado da indústria artística.
Além disso, eu sinto também que tem muita resistência por parte de outras Drags australianas em querer conhecer e trabalhar com alguém de cultura diferente da delas. Eu acho que algumas se sentem intimidadas. Por ser alguém de fora, eu posso introduzir um pouco da minha cultura em minhas performances, na qual vou estar trazendo algo diferente para as pessoas locais e isso se torna um ponto positivo. Um exemplo é o bate-cabelo, uma categoria que foi criada no Brasil e que posso trazer aqui para a Austrália.
Por um outro lado, a comunidade brasileira sempre se apoia, e vejo que aqui em Adelaide eu tenho recebido bastante suporte, pois sempre que podem, os brasileiros vem prestigiar os meus shows e isso é maravilhoso.
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