Uma investigação da SBS revelou a existência de um mercado clandestino online que tem como alvo pessoas que sonham em migrar para a Austrália.
Nesse espaço digital, vendem-se não apenas serviços fraudulentos de consultoria, mas também cônjuges de fachada — maridos e esposas falsos criados para ajudar estrangeiros a obter residência permanente.
A reportagem mostra um esquema sofisticado que explora a vulnerabilidade de estudantes e trabalhadores internacionais.
O Caso de Jerry
Jerry — nome fictício — é um estudante internacional e uma das vítimas desse golpe. Seu desejo era acelerar o processo de obtenção da residência permanente, com a esperança de receber a aprovação até o Natal deste ano.
Para isso, recorreu ao aplicativo chinês Xiaohongshu, conhecido por funcionar como uma espécie de e-commerce social.
Em abril, Jerry postou um anúncio online dizendo que buscava um 'primary applicant' — o candidato principal em processos de migração para profissiionais qualificados [skills visas].
Esse tipo de visto avalia critérios como educação, experiência de trabalho, idade e proficiência em inglês. O candidato pode incluir um cônjuge como dependente, que geralmente é o cônjuge (real) ou os filhos.
Após preencher o formulário online, um suposto agente de migração entrou em contato, e prometeu exatamente o que o estudante procurava: uma candidata com alta pontuação para o processo de visto das subclasses 189 e 190, destinado a migrantes qualificados.
O preço, segundo o agente, era “de mercado”: dezenas de milhares de dólares.

Reportagem da SBS Mandarim revelou esquema de vistos ilegais para cônjuges. Credit: Visa Reporter
A empresa apresentou a ele uma “esposa” falsa, supostamente enfermeira com 90 pontos no sistema de migração.
Para dar legitimidade ao relacionamento, os dois foram instruídos a produzir provas de vida conjugal: fotos em restaurantes, imagens íntimas e até uma conta bancária conjunta.
Jerry lembra que se sentiu desconfortável com a encenação, especialmente porque a parceira parecia muito experiente em tirar fotos que simulavam intimidade. Ainda assim, seguiu as orientações.
O agente garantiu que o processo era rápido e eficiente. Em julho, disse que Jerry teria a residência permanente até o final do ano [2025]. Animado, o estudante pagou a segunda parcela do contrato.
A Revelação
No início de setembro, a farsa desmoronou. A “enfermeira” enviada como parceira ligou para Jerry e confessou que havia sido enganada pelo agente.
Ela não era profissional de saúde em Nova Gales do Sul, nem tinha a pontuação de migração anunciada. Sua função era apenas tirar fotos com diferentes “cônjuges” para forjar provas de relacionamentos falsos.
Jerry descobriu que nenhuma aplicação para residência permanente havia sido registrada em seu nome. Os documentos enviados a ele, incluindo capturas de tela supostamente retiradas do site oficial do Departamento de Assuntos Internos, eram falsificados.
A situação ficou ainda mais alarmante quando ele percebeu que outras vítimas tinham sido associadas à mesma “esposa” falsa.
Até as capturas de tela eram idênticas, mudando apenas dados superficiais, como a data de nascimento.
Ao ligar para o Departamento de Assuntos Internos, recebeu a confirmação oficial: não havia nenhum processo de visto vinculado ao seu nome. “A partir daquele dia, minha vida simplesmente parou”, contou.

O Ex-cônsul honário do Brasil em Queensland, o advogado Valmor Gomes Morais, diz que o golpe é comum e explica como funciona. Source: Supplied
Mais vítimas
Jerry não foi o único. Ao procurar informações, entrou em um grupo de bate-papo com mais de 90 pessoas que relatam ter sido enganadas pelo mesmo esquema. Estima-se que as perdas somem mais de AU$ 10 milhões.
Muitas dessas vítimas criaram contas bancárias conjuntas com seus falsos cônjuges, mas os agentes encerraram as contas e desapareceram com o dinheiro.
O advogado Valmor Gomes Morais, ex-cônsul honorário do Brasil em Queensland, explica que a prática não é novidade. Segundo ele, há uma estrutura já conhecida de agências e intermediários que usam brechas legais e a a pressão emocional de migrantes para aplicar esses golpes. Morais reforça que esse tipo de fraude não se restringe a cidadãos chineses.
“É um problema mais amplo, que atinge diferentes comunidades que buscam a residência permanente na Austrália,” diz.
Como o esquema de skills visa é usado
"Esse tipo de golpe é bem comum nesses tipos de vistos que são os skill visas, ou seja, as profissões ou profissionais que a Austrália está precisando anualmente para que continue crescendo economicamente," explica Valmor.

Programa de Imigração 2023-24. Fonte: Department of Foreign Affairs and Trade (DFAT)
Segundo Valmor, os candidatos falam para o governo, "esses são os meus pontos, aqui estão as minhas qualificações, aqui está o meu resultado de inglês." Com base nisso o governo pode enviar o que se chama de 'convite' para que essa pessoa aplique para o visto em questão.
Quando a pessoa recebe, esse aplicante primário pode chamar um dependente ou aplicantes secundários, ou seja, esposas e filhos. Caso o visto do candidato principal seja aprovado, esses aplicantes secundários também têm oportunidade de ter a residência concedida.
Esse visto é muito atraente para essa modalidade de golpe porque já informa para a pessoa que uma vez que o aplicante primário receber a residência diretamente, essa pessoa que está pagando por esse esquema supostamente receberia a residência também.
Moraes diz que esse golpe não se restringe apenas aos chineses que querem migrar para a Austrália.
"Esse é um golpe que atinge não somente a comunidade chinesa, mas também as comunidades de outros países, por exemplo, Índia, Filipinas, Nepal, Paquistão, Sri Lanka.
"Esses são os países que estão entre os dez primeiros entre os que mais aplicam para vistos na Austrália. O Brasil não aparece ali entre os dez primeiros. Ele entra na classificação como 'outros'.
Mas os golpes atualmente estão cada vez mais sofisticados. A pessoa entra nesse golpe fica numa situação muito complicada porque ela não pode denunciar o golpe para a polícia porque ela também está fazendo parte de enganar uma entidade do governo. E uma vez que você coloca o seu dinheiro ali, nunca mais você consegue receber de volta," diz.

O caso mostra a complexidade dos processos de migração e como a promessa de um “atalho” pode levar a riscos financeiros e emocionais devastadores. Source: SBS / SBS News
Fraude com Consequências Reais
Jerry descreveu sentir-se tomado pelo desespero, sem conseguir pensar com clareza ao longo do processo. “Essa alegria turvou meu julgamento. Perdi minha capacidade básica de pensar com clareza”, afirmou.
Agora, sem dinheiro, sem residência permanente e sem perspectiva clara de futuro, Jerry e outras vítimas buscam justiça e alertam sobre os perigos desse mercado clandestino.
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