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'Fui garoto de programa por 4 meses em Melbourne para renovar meu visto'

Luca, 23, prefere não revelar sua identidade. Ele trabalhou como garoto de programa para pagar a renovação do visto de estudantes. A família não sabe, mas ele diz que o namorado apoiou sua decisão.

Luca

Luca é estudante internacional, tem 23 anos, e preferiu se manter no anonimato por medo de sofrer preconceito de algum futuro chefe no trabalho.

Resumo da reportagem:
  • Como é a prostituição como profissão para imigrantes na Austrália
  • Profissionais do sexo no país tem que escolher entre cumprir leis ou preservar sua segurança
  • Os brasileiros Luca, Leilande e Thales falam sobre trabalhar na indústria do sexo na Austrália
Atenção: este conteúdo é considerado sensível e contém informações e depoimentos relacionados a prostituição, exploração e abuso sexual.

Cada estado australiano possui leis distintas e específicas em relação ao trabalho sexual. A Scarlet Alliance, Associação Australiana de Profissionais do Sexo, atua desde 1989 em defesa da descriminalização da profissão em todo o país.

No podcast A prostituição como profissão: relatos de brasileiros na Austrália, a SBS em Português conversou com três imigrantes brasileiros que compartilham as suas experiências na indústria do sexo pago.

Para conferir a história da Leilande Santos Walker, que começou a se prostituir em São Paulo aos 14 anos e hoje tem jornada dupla de trabalho na Austrália, como cuidadora de idosos e profissional do sexo, clique aqui.

Se quer conhecer a história do Thales, que trabalha como garoto de programa na Austrália há seis anos e atua em diversas capitais do país, acesse este link.

A primeira entrevista é com o Luca, de 23 anos, que preferiu o anonimato, pois segundo ele “infelizmente, isso poderá afetar a minha imagem para alguma pessoa preconceituosa que possa ser meu chefe no futuro”.

Do Brasil para a Austrália

Luca conta que tomou a decisão de deixar o Brasil para partir em busca de melhores oportunidades. “Eu escolhi vir morar aqui porque há apenas alguns países onde brasileiros podem estudar e trabalhar legalmente ao mesmo tempo, e a Austrália é um deles. Eu trabalhei em muitos empregos comuns para estudantes internacionais nas áreas de hotelaria, limpeza, comércio e aplicativo de entrega de comida.”

Quatro meses como garoto de programa

“Eu posso dizer que começar a trabalhar com prostituição foi uma escolha minha, pois financeiramente era muito melhor do que todos os meus outros empregos. Desde o início eu já sabia que seria algo temporário, porque eu precisava de dinheiro rápido para renovar o meu visto de estudante”, explica Luca.

Ele revela outro motivo de ter optado por ser um profissional do sexo temporariamente: “Eu sempre fui uma pessoa muito sexual. Talvez o fato de ser brasileiro tenha alguma influência nisso. Então achei que poderia fazer o trabalho.”

Foi ao se sentir frustrado com o trabalho que fazia na época, onde não tinha um bom salário, que Luca decidiu perguntar ao namorado como ele se sentiria se ele começasse a trabalhar com prostituição.

“Depois de uma longa conversa ele concordou, então eu decidi que faria um perfil em um site de prostituição masculino. Criei uma descrição sobre mim, detalhei o que estava disposto a oferecer sexualmente em troca de dinheiro e publiquei fotos onde mostrava cada centímetro do meu corpo. A partir daí, as pessoas anonimamente passaram a entrar em contato comigo”, explica Luca.
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Depois de conversar com o namorado, Luca criou um perfil em um site masculino de prostituição, onde começou a receber contato de clientes. Source: SBS / SBS Filipino
Ele revela que "em duas horas de encontro com meus clientes eu conseguia ganhar a mesma quantia de 40 horas de trabalho no meu emprego anterior na área de hotelaria. Eu tive tive a experiência durante quatro meses, consegui o dinheiro, e decidi desativar o meu perfil no site de prostituição masculina.”

Perfil dos clientes

“Geralmente, a prostituição é ligada a dinheiro rápido, porém isso não significa que seja dinheiro que venha de uma forma fácil”, afirma Luca.

Ele descreve os diferentes perfis dos seus clientes: “Eram homens mais maduros, héteros curiosos, jovens cheios de energia, pessoas que tinham namorado ou esposa que estavam viajando, viciados em drogas, rejeitados pela sociedade ou pessoas com fantasias peculiares. E obviamente, muitos pais de família querendo satisfazer seus desejos secretos.”

“Talvez a palavra ‘sex worker (profissional do sexo)’ não englobe todo o espectro desta profissão, pois eu tinha clientes que me pagavam apenas para conversar, beber e comer junto com eles”, explica Luca.

Inseguranças

Luca destaca que em geral não se sabe como o cliente é fisicamente ou psicologicamente. “Cada atendimento é uma surpresa, considerando que apenas algumas conversas são trocadas via celular antes do encontro pessoal.”

Ele diz que “essa curiosidade e incerteza geram uma certa insegurança, mas o seu trabalho é proporcionar prazer para toda e qualquer pessoa que esteja contratando os seus serviços.”
Nem sempre o cliente te trará libido, mas o seu trabalho é proporcionar prazer à pessoa que contratar seus serviços.
Luca
“Sendo assim, você tem que ter uma mente bem aberta para decifrar o que fará daquela experiência satisfatória para os clientes e mantê-los satisfeitos para que eles continuem voltando e pagando pelos seus serviços, assim como toda profissão que envolve atendimento ao cliente.”

Luca reforça que “a comunicação e a clareza são muito importantes nas negociações, afinal, você não precisa aceitar tudo que o cliente quer. Por isso, durante o primeiro contanto a gente já discute sobre os limites, expectativas e valores.”

Família e namorado

Segundo Luca, a família dele não sabe que ele trabalhou como garoto de programa na Austrália, “pois eu prefiro não preocupá-los com isso.”

“Alguns dos meus amigos sabem e reagiram com preocupação no começo. Mas tive a oportunidade de ensiná-los sobre as formas de se evitar infecções sexualmente transmissíveis, sobre a violência física e mental em relação a essa profissão e principalmente sobre a importância de descriminalizarmos a prostituição.”

“Já meu relacionamento com meu namorado sempre foi de mente aberta e achamos que podemos criar nossas próprias regras e limites de acordo com nossas personalidades, e não de acordo com o que a sociedade espera de nós. Sendo assim, ele me apoiou na minha decisão e decidimos juntos que eu não trabalharia mais nesta área”, explica Luca.

Importância da descriminalização da profissão

Para Luca, “ainda existe muito preconceito contra a prostituição, então eu escolhi o anonimato para esta entrevista porque, infelizmente, isso poderá afetar a minha imagem para alguma pessoa preconceituosa que possa ser meu chefe no futuro.”
Quanto à profissão ainda ter aspectos considerados crime, Luca diz que “as pessoas vão se prostituir de qualquer jeito, pois essa é uma das profissões mais antigas da humanidade. Sempre haverá quem esteja disposto a oferecer serviços sexuais e quem esteja disposto a consumir e pagar por isso.”

Ele defende a descriminalização da profissão para “diminuir o alto índice de agressões e abusos nesta área, com lugares e instituições que nos ofereçam suporte legal, físico e mental para evitarmos que os abusos continuem acontecendo.”

Luca explica que “no estado de Victoria, profissionais do sexo só podem fazer 'outcall' legalmente, que significa ir até o cliente, pois é crime receber clientes em casa. Isso aumenta os riscos, pois quando você está na casa do cliente, geralmente um desconhecido, dificilmente vai ter controle da situação."
Sex work is now decriminalised in Victoria.
Manifestação em Melbourne pela descriminalização do trabalho sexual. A atividade foi descriminalizada no estado de Victoria, mas ainda há aspectos que colocam a segurança dos trabalhadores em risco. Source: Twitter / Twitter/Scarlet Alliance
"Você não sabe se a pessoa está falando a verdade sobre quem ela é, se tem mais de uma pessoa na casa durante o programa, ou até mesmo se você está sendo filmado sem o seu consentimento.”

E completa: “Para termos representatividade, direitos e regulamentos, esta profissão precisa ser naturalizada e totalmente descriminalizada.”

Leis relativas ao trabalho sexual na Austrália

O advogado e ex-Cônsul Honorário do Brasil em Queensland, Valmor Morais, falou à SBS em português sobre como as leis australianas funcionam em cada estado em relação ao trabalho sexual.

“Para você entender a complexidade desta indústria no país, Victoria e New South Wales são os únicos estados em que é legalizado oferecer serviços sexuais nas ruas, algo que é proibido e criminalizado em todos os outros estados australianos.”

Vamor explica características das leis em cada estado: “Em Queensland é crime oferecer serviços sexuais sem o uso de preservativos. Já em South Australia, onde a indústria sexual é amplamente criminalizada, os preservativos podem ser usados como prova pela polícia para incriminar os trabalhadores e seus clientes.”
“Já no Território da Capital Australiana, ACT, o trabalho sexual é legalizado desde 1992, então os serviços sexuais podem ser oferecidos legalmente individualmente em casas, hotéis e acomodações, mas é crime que dois profissionais do sexo atendam ao mesmo tempo um cliente, assim como em Queensland isso também é proibido. Na Tasmânia e Western Australia os bordéis são proibidos, mas em Victoria e NSW eles são permitidos.”

“E enquanto em NSW é permitido que os trabalhadores do sexo recebam os seus clientes nas suas próprias residências, em Victoria é crime receber clientes em casa, sendo legalizado apenas ir até as residências dos clientes ou atendê-los em hotéis.”

“É uma indústria que perpetua a vulnerabilidade de todos. Se já é uma profissão que existe, se a gente sabe da atuação dela, nós deveríamos criar mecanismos da humanização do trabalhador em qualquer profissão que ele exerça”, opina Valmor.

Pesquisas sobre trabalhadores sexuais imigrantes na Austrália são limitadas. Uma pesquisa feita em Sydney sugere que imigrantes constituem uma proporção substancial de trabalhadores na indústria do sexo na Austrália, particularmente da Tailândia, China e Coreia do Sul. Saiba mais detalhes fazendo o download do estudo Migrant Sex Workers in Australia.

Cada estado e território australiano possui uma organização de trabalhadores do sexo onde é possível encontrar informações relevantes e suporte para profissionais da categoria. Clique aqui para ter acesso a este conteúdo disponibilizado pela Scarlet Alliance, Australian Sex Workers Association.

Se você ouviu o podcast e/ou leu esse artigo, e se sentiu triste ou afetado, ligue gratuitamente para o LIFELINE no número 13 11 14, que funciona 24 horas por dia, sete dias por semana, ou visite lifeline ou beyondblue.

Há também o escritório de serviços australianos que atende em todos os idiomas no número 131 202 ou por esse link.

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By Felippe Canale
Source: SBS

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